PRETO ≠ NO TOPO

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Lucas Litrento

Por que, afinal, ela se dava a todo esse trabalho? Por que almejar o topo e lá ser submetida a uma prova de fogo? Seja como for, que esse fogo a consumisse! Que a reduzisse a cinzas!

Virginia Woolf, Mrs. Dalloway

Se por algum milagre da boa sorte, conseguir convencer os milhões de negros do interior a abandonarem seus trajes feitos de capim e a envergar […] ternos de segunda mão. […] Vejam o grande mercado que já existe aqui para roupas velhas!

De uma correspondência de Henry Morton Stanley[1]

É estar na base, olhar pro topo e ter os olhos atacados por tanta brancura: além do sol a pino, a estrutura de ouro esperando o único preto vencedor ficar na ponta dos pés, acenar pra todo o resto do povo e constatar que de cima tudo é claro.

A ostentação é um tema em crescimento na música popular e até no cinema. Se tratando de temas do momento, de ‘virais’, é consenso que as coisas passam rápido demais, que variam de acordo com a demanda, mas é fato que vivemos uma campanha pelo consumo exacerbado cada vez mais difundida, inclusive fora do centro. Cornel West em sua obra Questão de Raça aponta que esse comportamento da indústria cultural norte-americana se intensificou a partir dos anos 90[2], se aproveitando da crise moral e financeira nas comunidades periféricas (principalmente as afro-americanas). Nas décadas seguintes esse desespero foi se inflando com o aumento da desigualdade a nível global. E como sempre acontece nos momentos de crise, o nacionalismo (e consequentemente o fascismo e o racismo) se intensifica, como se fosse a última salvação de um sistema falido. O que aumenta o niilismo e o desterro, sentimentos cada vez mais universais e simultâneos:

Todos nós estamos agora destinados a nos tornar refugiados em nossas próprias terras; todos estamos em busca de um solo, um ar, uma água que não tenham sido corrompidos; estamos todos em busca de um fora — um refúgio — que escape ao cerco cibernético dos espaços-tempos (o controle em tempo real dos indivíduos, por meio das novas tecnologias).[3]

Por mais que cada caso tenha sua particularidade, cada propaganda o seu público-alvo, a ideologia em torno da sensação de poder reforçada através do consumo tem o mesmo objetivo difuso em todos os lugares. “Ser alguém na vida”, eles dizem. Dar voz a quem não tem, essas coisas…

Também partem da margem, de forma bem orgânica, muitos discursos de ode à classe média. O que não é nenhuma novidade, muito menos algo gravíssimo. O ponto é que a figura do preto no topo é cada vez mais desejada por nós. O que pode ser entendido dessas manifestações culturais e políticas além da sua funcionalidade enquanto propaganda massiva? Não podemos cometer o erro de essencializar as problematizações em torno disso, a raiz do problema é sim o capital global, mas a ostentação gera uma série de variantes que podem ser lidas como verdadeiras encruzilhadas. Há nesse imbróglio muitas necessidades do lado de cá: antes de tudo, a necessidade de ter uma voz. E desejar uma voz nunca será um problema, mas o modo como se busca talvez seja.

Como afirmou Audre Lorde em um dos seus ensaios, “as ferramentas do senhor nunca derrubarão a casa grande”[4].  Esse é o cerne da fragilidade da imagem que apresento no primeiro parágrafo. Como é possível estar no topo vivendo numa armadilha? E se lá pousarmos, estaríamos ainda sendo os mesmos de quando na base? Passamos a ser outros no momento da coroação? É possível vencer as barreiras da diferença com suor? O mundo real não é tão romântico assim. Não existe uma fórmula mágica. É que o desejo às vezes blinda os olhos.

I (Armadilha bem amarrada)

Desde a sua origem, enquanto prática fundamental para a sua existência, o capitalismo nos tira a humanidade. Quando nos criou já foi nos secando, nos transformando em commodities. A raça, como novidade no mundo recém saído das ‘trevas’, era só mais uma peça nas engrenagens da grande máquina em construção. Eis as regras: é preciso manobrar, controlar e explorar a massa de trabalhadores, além de intensificar a competição. Desse modo, as estruturas raciais foram desenvolvidas com a função de determinar a Divisão Internacional do Trabalho (DIT). É muito mais uma consolidação da diferença enquanto reguladora do trabalho do que sobre preconceitos com bases religiosas, ‘culturais’, morais ou individuais. É através da marcação racial que os trabalhadores são definidos. E a escravidão surge como uma etapa crucial para o desenvolvimento do capital. Como exemplifica Marx, emulando (para em seguida criticar) a mentalidade do grande capitalista:

A escravidão direta é o eixo da indústria burguesa, assim como as máquinas, o crédito etc. Sem escravidão, não teríamos o algodão; sem o algodão, não teríamos a indústria moderna. A escravidão deu valor às colônias, as colônias criaram o comércio universal, o comércio universal é a condição da grande indústria. Assim, a escravidão é uma categoria econômica da mais alta importância. Sem a escravidão, a América do Norte, o país mais progressista, transformar-se-ia num país patriarcal[5].

O que seria do capitalismo sem a existência da raça, sem a escravidão? Ele seria? Para o exúnico Malcolm X, raça e classe não são categorias independentes: “É impossível para uma pessoa branca acreditar no capitalismo e não acreditar no racismo. Não se pode ter capitalismo sem racismo[6]. Poucas ideias: o racismo não é apenas uma das ideologias que sustentam a manutenção do capital global, mas parte de sua essência; de tamanha importância que pode ser considerado uma relação social[7]. A Lélia reforça essa ideia ao citar que o racismo “é um dos critérios de maior importância na articulação dos mecanismos de recrutamento para as posições na estrutura de classe e no sistema de estratificação social”[8]. Ou seja, quando falamos de racismo falamos de capitalismo, ambos estão ligados desde a origem, no século XVI. São irmãos siameses que precisam um do outro para continuar sobrevivendo. Antes de ser tudo o que é, o racismo é lucrativo. É capaz de fomentar um lucro que, não apenas multiplica a existência de bilionários, mas alicerça estruturas nacionais. O que seria do Estado sem a raça?

Hoje, muitos dos nossos irmãos, carregados de discursos bem intencionados, essencializam as próprias condições de racializados. Não podemos ler a raça como algo imutável quando a realidade mostra exatamente o contrário. Raça não é ancestral, mas as sociedades, suas leis e seus deuses sim; a terra é ancestral, raça é novidade aqui no globo. As coisas acontecem rápido demais, próximo demais, não faz muito tempo que a humanidade passou a considerar a marcação racial. A capacidade performática e maleável da identidade racial reforça ainda mais a sua definição como relação social.

Audre Lorde: “As ferramentas do senhor nunca derrubarão a casa grande”

Apesar do caráter maleável, a raça é, como reiterado anteriormente, instrumento de primeira ordem do capitalismo global, a eterna ferramenta do senhor. Porque ela, quando marca os da margem também marca os do centro. Pra reforçar o controle, a branquitude é anulada. No lugar dessa marcação racial, os brancos são tidos como ‘normais’. Ora, mas não se trata de normal e de anormal, mas de escravo e senhor, de assalariado e burguês, de quem manda e quem obedece. Então como subir ao topo sem ser instrumento de reforço do sistema vigente?

Essa compreensão nos mostra que não há possibilidade de acabar com o racismo enquanto houver capitalismo (há possibilidade de acabar?). Toda e qualquer prática considerada antirracista produzida pela supremacia branca capitalista (ou com o seu aval) terá como fim reparos pontuais que não ferem a estrutura opressiva:

No caso da luta contra o racismo, a ação direta do capital pressiona para que o movimento negro se limite a ações contra os preconceitos nos comportamentos individuais e na transformação das políticas públicas em compensatórias ou de promoção social.[9]

Essa prática ilustra bem o cerne em torno da ideologia do topo. Observe que a pressão dos capitalistas em cima dos movimentos negros é para que a luta antirracista foque cada vez mais nos indivíduos ao invés de problematizar o sistema. O individualismo é uma palavra-chave aqui, pois é por meio dele que desdobram todas as falácias propagadas aos quatro ventos, como a meritocracia, a popularização da figura do bilionário cool (o que leva, consequentemente, à normalização da desigualdade), a ostentação difundida por artistas vindos da periferia do sistema e a teologia da prosperidade (a febre do neopentecostalismo).

Apesar de remeter a uma pirâmide, o topo é muito mais espaçoso do que parece. Há uma arena bem na ponta da sua estrutura porque não é apenas no trajeto que lutamos entre nós, mas até quando dividimos o espaço almejado. E não é qualquer arena, mas uma televisionada. Aqui, competição também é palavra-chave. Mais do que isso, é ingrediente para a manutenção dessa ideologia.

II

Foto do disco Cores e Valores, dos Racionais MC’S

Sabemos que nesse mundo, onde as engrenagens moribundas do capitalismo são diariamente forçadas, é preciso ter para ser, o direito à subjetividade vem com poder e o poder é dinheiro, o poder é ser branco. Reivindicar subjetividade é entrar no ‘jogo sujo’, o limiar entre uma espécie de hackeamento do sistema e uma alienação irreparável: andar feito um zumbi e não como Zumbi. “Para o negro, há apenas um destino. E ele é branco.”[10] É através do dinheiro que isso acontece.

Entre os efeitos mais devastadores causados por essa desigualdade está a desesperança de toda uma geração de comunidades racializadas mundo afora. A democracia nas sociedades capitalistas é sempre democracia pra alguns, os que sobram sentem dobrado o peso da falta de perspectiva num futuro próximo.

Mas para um povo odiado e perseguido, cujos bens mais valiosos têm sido a memória subversiva, a integridade pessoal e o amor-próprio, tornar-se prisioneiro da amnésia histórica, das obsessões materialistas e da acomodação pessoal para se sentir aceito a qualquer custo produz o niilismo negro e o suicídio coletivo.[11]

Ainda assim, não podemos moralizar a ostentação. Nas representações artísticas das comunidades negras, é uma tentativa de respirar. Estamos tentando. Apesar de haver certo exagero nas ideias de ‘empoderamento’ (ou seja, de um empoderamento puramente mercadológico, espalhado aos quatro cantos), existe, no ato de verbalizar a ostentação, a construção de um discurso que combate de frente esse niilismo, utilizando de suas próprias características e o recriando como “um niilismo empoderador, um momento de positividade através da formação e da estruturação de relações afetivas”.[12]

Usar a ostentação nem sempre é ser envenenado por ela, mas a linha é tênue.

Tomada radical é agir com os próprios meios. Mas há ginga. Sincretismos e hackeamentos. Não há outra: “dinheiro na mão de favelado é mó guela”.[13] A necessidade de ocupar espaços muitas vezes preenche esses mesmos espaços com esvaziamentos. Não muito de novidade: onde não há radicalidade, nada é mudado. A mudança é o único caminho porque a supremacia branca e capitalista nunca nos dará a oportunidade real de sermos.

A própria música rap nos mostra que é possível abordar a questão da ostentação com um olhar atento e ciente das suas dualidades, sem cair nas armadilhas. O último disco dos Racionais MC’s, Cores & Valores, passeia nessas veredas incertas. Na faixa Eu Compro, Ice Blue rima que “Sem ter como, sem dinheiro, cê não entra no game”[14] e depois:

Os nego quer algo mais do que um barraco pra dormir
Os nego quer não só viver de aparência
Quer ter roupa, quer ter joia e se incluir
Quer ter euro, quer ter dólar e usufruir[15]

Muito mais que bens materiais, muito mais que status, mas pra ser é preciso ter. Nenhuma voz é de graça. E o óbvio: a imagem do topo suscita uma competição sem fim. Competição que exige atalhos. Querer tanto ser o preto no topo que se torna o espelho do branco. Disputar o quê, se nem deveria haver disputa?

A desigualdade reforça essa síncope feita de vazios, onde a falta do mínimo projeta no negro (no racializado) o desejo de, além de imitar o branco (o normalizado), tomar de assalto a sua vida. “Não é o Eu Colonizador ou o Outro Colonizado, mas a distância perturbadora entre ambos que constitui a figura da alteridade colonial.”[16] E se a distância, os percalços, as imprevisibilidades e as únicas chances demarcam identidades; a chegada ao topo, ao sucesso, também faz o mesmo. Porque, mais uma vez, é sempre a relação com o outro que faz a identidade. Somos uma peça no tabuleiro. E se de lá clamarmos pela subjetividade, somos expulsos. Por que a “atmosfera de clara incerteza que envolve o corpo certifica sua existência e ameaça seu desmembramento”.[17]

Não é só a ostentação enquanto mecanismo de defesa que alicerça a imagem de um topo, antes fosse. Com um moralismo altamente conservador e uma necessidade hierárquica de controle e castração pela manutenção de um micropoder disfarçado de oportunidade, nos tornamos policiais de nós mesmos. Do modo mais truculento possível. Viver nesse estado de exceção constante também é absolvê-lo. Então quando se pensa no topo, a figura do oprimido se torna duplamente um candidato e um agente regulador a serviço da supremacia branca. O sul do mundo se digladiando pra ter uma caixa postal na Times Square.

Apesar de, aparentemente, dar oportunidade para todos chegarem ao topo, a supremacia branca, quando permite a ascensão de um de nós, não nos enxerga como sujeitos; somos representantes de milhões, somos os escolhidos a dedo, não existe aleatoriedade porque somos os da rodada, outros virão. E apesar de representar uma raça, esse preto no topo não configura uma imagem que clama à coletividade. Afinal, ele está na ponta sozinho, depois de passar na frente de muitos irmãos e irmãs. A coletividade, nessa busca pelo pote premiado, é impossível.

Então não há possibilidade de um preto no topo ter sua subjetividade alcançada. Ele sempre será o símbolo, o mártir se acontecer alguma coisa mais dia menos dia. Negativa ou positivamente ele é o Às da supremacia branca, nenhum corpo marginalizado é descartado. 

“Aquele louco que não pode errar”[18].

O negro é incompatível com o erro justamente por ser incomparável com o branco, que é quem pode errar, já que é humano. Ao negro, nada menos que a perfeição, nada menos que o topo. A única forma de ser é sendo perfeito, incorrigível, símbolo. Se ao negro é negado o erro, lhe é negada a humanidade. Então o que sobra? Quando o tombo vem, vem forte. Porque o topo é ambição demais, mas é almejado desde os primeiros grilhões. Nunca falei que é invenção nova. Muito pelo contrário.

Além disso existem muitos outros fatores que compõem as configurações de conflitos internos, da competição. Não basta ser da mesma raça. Somos gente, apesar de colocarem isso a prova a todo instante. Daí vem os rincões do país, vem a classe, vem o gênero; tudo isso amalgamado nessa guerra pela subjetividade, já configurando como subjetividades. Vimos reprodução de racismo por pessoas negras, de bifobia por pessoas LGBT… Será esse o preço pelo topo? Será essa a transição natural pro embranquecimento que é o mesmo que humanização? Não me peça respostas, isso é só um ensaio, o antes do teste. Mas o topo é nocivo pra nós, isso é fato. Ele não nos unifica de nenhuma maneira. Muito pelo contrário.

O topo precisa ser destruído; não é muito tarde, nem cedo demais.


[1] HOSCHSCHILD, Adam. O fantasma do Rei Leopoldo: uma história de cobiça, terror e heroísmo na África Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

[2] WEST, Cornel. Questão de Raça. 2ª Ed. São Paulo: Companhia de Bolso, 2021.

[3] BONA, Dénètem Touam. Cosmopoéticas do Refúgio. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2020.   

[4] LORDE, Audre. Irmã Outsider: Ensaios e conferências. 1ª Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

[5] MARX, Karl. Miséria da filosofia. 1ª Ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017.

[6] AL-SHABAZZ, Al Haji Malik. Há uma revolução mundial em andamento: discursos de Malcolm X. São Paulo: Lavrapalavra, 2020. Grifos meus.

[7] BALIBAR, Étienne; WALLERSTEIN, Immanuel. Raça, nação, classe: as identidades ambíguas. São Paulo: Boitempo, 2021.

[8] GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

[9] OLIVEIRA, Denis de. Dilemas da luta contra o racismo no Brasil. In: ALMEIDA, Silvio (Org.) Marxismo e Questão Racial: Dossiê Margem Esquerda. São Paulo: Boitempo, 2021.

[10] FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

[11] WEST, Cornel. Questão de Raça. 2ª Ed. São Paulo: Companhia de Bolso, 2021.

[12] GROSSBERG, 1989, apud HOOKS, Bell. Anseios: Raça, Gênero e Políticas Culturais. São Paulo: Elefante, 2019.

[13] RACIONAIS MC’s. Nada como um dia após o outro dia. São Paulo: Boogie Naipe, 2002. Disponível em < https://open.spotify.com/album/4HcPzKyKVtcZCwJgesoZWn >.

[14], [15] RACIONAIS MC’s. Cores & Valores. São Paulo: Boogie Naipe, 2014. Disponível em <https://open.spotify.com/album/1CYfSGAq6xQNF5V8CAeP7m>.

[16], [17] BHABHA, Homi K. Recordar Fanon: O eu, a psique e a condição colonial. In: FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020. (Apêndice).

[18] Racionais MC’s, 2002.

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