[Resenha] anjos tocam lira nas molas do colchão, de Hyago Carlos Marques

*Por Magno Almeida

azul é a minha cor favorita, mas quando este tom varia, fazendo os meus olhos emergirem no mistério, não sabendo nomear o azul mesmo quando azul: a poesia. talvez, semelhante a esta constatação, a ideia de que anjos lambem, expõem o sexo, firme, brincam com a possibilidade do adeus, ateiam fogo quando o desejo é pólen ao vento, nos desenham as brechas e os acontecimentos tornam-se fragmentados — como este texto aqui.

quando eles, seres celestiais, à priori (cuidado!), nos fazem questionar a verdade contada a nós — sobre bondades e misericórdias — quando forçados às convenções religiosas e, assim, aprendemos desde cedo a mentir. apesar de tudo, os anjos também podem nos fazer devotos de si, dos enganos, das ilusões, o que nos agrada (?). prosseguir, por uma ilusão, talvez seja um caminho para falar do anjos tocam lira nas molas do colchão, de Hyago Carlos Marques. como diz Virginia Woolf, “sem dúvida, nossa vida seria muito pior
sem o nosso espantoso talento para a ilusão”.


para Kandinsky, um dos pioneiros da arte abstrata, as cores tinham significados espirituais e emocionais, e ele atribuía a cada cor uma qualidade única. o azul, segundo o pintor, denotava uma tranquilidade proveniente do espiritual, associada ao infinito e à profundidade das coisas. a cor representava para ele o elemento água e o céu. o artista escreveu como o azul poderia nos levar a um estado de tranquilidade e contemplação e, ao mesmo tempo, de pacifismo e mistérios. é assim que abrimos a porta para receber os poemas do livro de Hyago, numa sempre inconstância: ser desejo quando lava; ardência em chamas celestiais, a utopia da troca de saliva, entre poros e pelos e sinais vermelhos, cartografias corpóreas de territórios inexplorados, como anuncia a persona poética de Hyago.

nesta amálgama de sentidos, o azul além de ser a cor mais quente —, beirando o clichê datado dos idos de 2013, quando do lançamento do filme que carrega o título, proveniente da hq de Julie Maroh —, é também a segunda-feira tristonha de desejo e desencontros que embala gerações, cantada pela New Order quando, de cara, o livro de Hyago se mostra intrigante desde a sua cor de entrada. é preciso tomar cuidado, esse eu lírico parece se revelar ao tempo que se rebela, mas é o outro, à espreita, que dá o tom dos arrepios, quem diz qual a posição dos braços, dos beijos, dos contornos, da saudade que ora é
orca, que se carrega sozinho.


anjos tocam lira nas molas do colchão (edição do autor, 2021), é o primeiro livro do poeta, com prefácio de paloma franca amorim e posfácio de Bianca Gonçalves. é um livro que fala para e por meio de outras, desde a sua genealogia evocada nas primeiras páginas, em agradecimento à mãe e à irmã. as outras que também fazem parte de sua formação intelectual, poética e amorosa, como o primeiro poema do livro, em forma de epígrafe, constituído, o que me parece, a partir da fala de sua madrinha, passando por bell hooks, que certamente ocupa um lugar familiar, porque não tem como não ser de outra forma para nós. depois, o poeta e ativista estadunidense Essex Hemphill e o seu abraço tão peculiar, com as veias que saltam do braço e punho fechado (pronto para o ataque!) e olhar de bicho faminto, naquele filme tão duro e tão doce no quaas línguas são desatadas. tem a Beyoncé dentro de mais uma página enegrecida, assim como Cyana Leahy, Grace Passo, Sade Adu, Matteusa — a quem eu jamais conseguiria destinar palavras tão frutíferas como fez Hyago, que também baniu a desistência do coração. ao fim, sinto-me menos forasteiro, menos alienígena e enfim, pertencente ao meu bando, a um lugar de origem que versa liricamente o amor e o abraço; enfim, reproduzo lemebel, outra de nós, “que a patadas aprendemos a ler; e a besos aprendemos a escribir”. todas nós ligadas pelas vísceras.


passear pelos poemas desse livro tão instigante é sentir que quase tudo nele é azul e quase angelical, porque os anjos, querida, com bocas vorazes e prontos para as estocadas a todo instante, — animalesca e devoradora é a paixão, que urra como um brega num boteco sujo, — também são sacanas e nos escapam.
os anjos nos engolem lubrificando a rigidez dos membros com a sua saliva de fogo e depois fogem, estacam os toques, os aromas; empalidecem os azuis, podendo nos levar a um completo caos dos sentidos no banco, quando se clama pelo vermelho, pelas peles negras, pelos fios de cabelos nas mãos, pelos timbres, pelo corpo composto em sua maior parte de água e céu.

Foto: Lucas Litrento
anjos tocam lira nas molas do colchão, de Hyago Carlos Marques – Foto: Lucas Litrento

noto, ao longo do livro, a presença de muitos anjos escorregadios, os piores deles, acrescento.

por isso, burlar com a beleza das palavras e o arranjo labiríntico do poema: os tempos pestíferos, a falta do riso, o corpo esperando o retorno, paralisado, o amor que não germina; é preciso burlar o apreço dos homens que desenhamos como divindades e seguir, talvez, a geografia dos sonhos, recalcular os limites do precipício, ter a fome do sol; bradar e bradar os gritos, mesmo solitário. mesmo em silêncio, dizer não, mesmo dizendo sim aos anjos, porque nem sempre quando se ajoelha, se tem que rezar. às vezes quer-se morder, estraçalhar com e como as cadelas famintas e sem perdão, como nos aponta na melhor direção, Drummond: suponha que um anjo de fogo/ varresse a face da terra/ e os homens sacrificados/ pedissem perdão./ não peça.


e não, mesmo não sendo eu, magno, a postos, (como esse eu lírico com a lira firme nas mãos) com as pernas abertas à espera das asas, também eu senti e sentir é continuação. também era eu, ali, na beirada, esperando a volta daquele que deita o corpo sobre a cama, que cospe maresias, expõe o peito vazio.
“quando de mãos dadas andamos/ esgotando o verbo”; também era eu, ali, escutando as mentiras dos anjos, seu papo sobre casa, fome e arrepios quando o corpo levita em gozo. era eu ali em cada passo, pois não há melhor forma de estar num livro de poemas que não o ser, perigosamente, mapeando
saltos no vazio, olhos fechados e sussurros, sejam de permanência ou adeus. era eu ali, porque todos e todas nós nos ligamos pelas vísceras, como já disse.

parece que jorge de lima também sabia disso. nós, poetas, bichas, seres intranquilos: vós não viveis sozinhos / os outros vos invadem/ felizes convivências/ agregações incômodas/ enfim ambientalismos, / e tudo subsistências/ e mais comunidades;/ e tantas ventanias


não sei se fim ou um espectro de começo, mas sigo acreditando em anjos e, por isso, eles existem, como Clarice me ensinou lá atrás, como reforça aqui, Hyago (a quem preciso abraçar e agradecer, agradecer!) agora. como firmemente ordena Castiel Vitorino Brasileiro, juntas precisamos “quebrar. as
embarcações”.

(o embrião deste texto nasceu inicialmente de uma postagem no Instagram, após a leitura que fiz do “anjos tocam lira nas molas do colchão, de hyago carlos marques, mas foi estendido no dia de céu azul claro e de
chuva, a pedido do querido Richard Plácido (a quem agradeço pelo convite) para compor os diversos olhares e leituras que passeiam por este site.
Maceió, 7 de setembro de 2023.)

*Magno Almeida (Maceió) é professor, poeta, Mestre em estudos literários (PPGLL/FALE/UFAL). Publicou pelos poros e pequenos apelos (IOGRAM/2015), composição para além-vértebras (IOGRAM/2016); está nas antologias Simultâneos Pulsando – uma antologia fescenina da poesia brasileira contemporânea (Corsário-Satã SP/2018) e QUEBRA: poesia negra contemporânea em MCZ (phillos academy, MCZ/ 2021).

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