As reverberações de Cavalo

Edição: Lucas Litrento
Texto: Joelma Ferreira

Joelma Ferreira, uma das sete protagonistas do mais recente longa-metragem alagoano, relata um pouco da sua experiência sensorial durante as gravações e relaciona essas imagens com a sua pesquisa acadêmica

Acho que é a primeira vez que escrevo bem à vontade para falar de algo. Tentarei dar um tom de conversa para esta escrita partindo da minha experiência com dança, a vivência em Cavalo e apresentar o que intenta a minha pesquisa de mestrado que tem o foco no cotidiano das mulheres negras alagoanas e filhas de Oxum.

A proposta do longa-metragem alagoano Cavalo (2020), ao lançar sete corpos negros como protagonistas, para um mergulho ancestral através da performance, foi uma escolha muito assertiva se pensarmos pelo viés de Beatriz Nascimento, onde o corpo negro é o documento, lugar de memória e sabedoria.  Parafraseando Tia Marcelina, que disse enquanto sofria os golpes da violência durante o Quebra de Xangô de 1912: “bate moleque, quebra braço, quebra perna, mas não tira saber”. Fica nítido com essa fala que o conhecimento perpassa pelo lugar do corpo (e além), que resistindo, dar-se continuidade às práticas tradicionais afro-brasileiras. 

A experiência com o filme afetou outras camadas da minha percepção enquanto mulher negra: foi durante a produção que eu fiquei sabendo ser filha de Oxum. Apesar de dançar desde a infância, tendo as práticas corporais como principal via de acesso à informação, ainda não havia mergulhado tão profundamente, por intermédio da religiosidade, na cultura afro-brasileira, mas sabia que minha trajetória como dançarina me levaria a esse momento. Assim como anseio experienciar outras vertentes da dança, a aproximação com o universo da cultura negra tem um deleite especial.

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O convite para realizar o teste de elenco para Cavalo foi a minha primeira experiência do tipo. Estava mais curiosa para saber como era participar de um teste de elenco, do que projetando expectativas em participar do filme. Passei. [Os diretores] Rafhael e Werner fizeram uma reunião comigo para me explicar como seria minha participação e saber se eu realmente aceitaria ingressar no elenco. Fiquei felicíssima! E ali entendi que seria o meu momento com a Dança dos Orixás e a aproximação com o Candomblé e a Umbanda.

Acho Cavalo um filme com muitos signos e se estivesse “de fora” precisaria assisti-lo algumas vezes para fixar uma opinião mais apurada. Estando “de dentro”, o que posso apontar como mais significativas são as sensações provocadas em mim durante meu percurso no roteiro e isso muitas vezes é difícil racionalizar. Principalmente por se tratar de uma temática ampla como a Ancestralidade, e de interferências energéticas que não estão sob o nosso domínio, mas estiveram conosco e em diálogo durante todo o processo das gravações… As energias dos Orixás. E isso eu digo por saber como se deu a condução dos processos, cumprindo os limites que eram postos, mas especialmente por sentir, ao fim da minha última cena, o tempo em suspensão. Por sentir que eu não estava só.

Não quero afirmar que estive incorporada, não é isso. Porém, compreendo que o nível de inteireza foi de uma profundidade corporal tamanha, atingindo um pico no qual me deixou sem palavras para dimensionar, racionalizar, explicar… Conversando com Flávio Rabelo (um dos preparadores de elenco) sobre a construção desse “corpo cavalo”, ele me disse “que é um corpo que está mediando forças, um corpo treinado para a micropercepção, para não buscar a atuação, mas sim, para deixar as coisas se expressarem, levando em conta a ancestralidade”. Ou seja, um corpo preparado para perceber e expressar, mediar as forças do próprio corpo, da musculatura, das tensões que as diferentes movimentações relacionadas às características que os Orixás acionam. 

Rosamaria Barbara (2002) coloca que o Candomblé utiliza-se da arte e da comunicação não verbal, pois há mensagens profundas expressadas sensorialmente que seriam impossíveis de transpor em palavras. Por isso a arte ritual é valorosa, agindo como mensageira da alma humana. Deste modo, observo uma ligação com o que vivenciei e citei acima. Não só pela dificuldade de verbalizar essa experiência, como também pela própria força do que aconteceu no corpo, pelo corpo e através da arte da dança.

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Tentei descrever um trecho da minha última cena no filme, rememorando as sensações e percepções daquele momento: o corpo cavalo pulsa vida no meu ventre, a energia vital é dissipada pela coluna, alimentando todo o corpo, modificando o meu estado de presença. Na pele, a delicadeza da água. Água que desafia e me domina. Encontro-me neste momento na encruzilhada antagônica de notar o inconsciente, liderando a busca pelo prazer da criação. Esta água sou eu, este espaço sou eu. Uma pausa dilatada para o gozo, depois o grito ensurdecedor rasgando o silêncio e a escuridão que também sou eu. Choro compulsivo de quem acaba de nascer.

Fazendo algumas interpretações de Cavalo, posso pensar que o grito no fim é também um grito de (re)começo. O ciclo temporal que se põe infinito na cultura africana dos povos Dogon, por exemplo, segundo Eduardo Oliveira (2009), representa-se através de linhas em zig-zag, e não por uma linha retilínea do tempo como no Ocidente, pois estes povos entendem a existência de forma dinâmica e fluída. Os Dogon compreendem que essa linha vai até o infinito.

A temporalidade cíclica e infinita também vai ser encontrada por Barbara (2002) na dinâmica do Candomblé, em que os aspectos da vida são interligados. Assim, no ritual há ligação com a dança, unida aos cânticos, construindo uma corrente difícil de evidenciar o começo e o fim. Percebo aqui um elo com a temporalidade do filme: ao mesmo tempo em que há rupturas nas transições das cenas que nos deslocam para diferentes estados de sensações, há cenas mais longas que nos permitem adentrar no próprio tempo da dança, do ritual, do que é documental e ficção; há também cenas mais curtas, tão enérgicas quanto às demais. Principalmente nas últimas, onde há sobreposições das imagens localizo o “zig-zag”. O cruzamento entre um homem e uma mulher pode dar a este grito uma conotação de (re)nascimento, que faz infinita a história de seu povo pelas suas gerações; ou do despertar para uma revolta, se voltarmos o nosso olhar para o chão alagoano onde o filme é gerado.

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A última cena com “Exu” caminhando na reta da rua não finda o filme. Há uma sensação de continuidade na caminhada “infinita”… Em um tempo outro, um tempo que extrapola o filme. 

Sobre o tempo de Exu, Muniz Sodré (2017, p. 257) aborda um provérbio/aforismo nagô: “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje”. E assim, expõe que Exu transita pela temporalidade, ludibriando o tempo cronológico europeu, podendo coexistir no presente e no passado.

O tempo no meu corpo durante a performance que eu chamo de “dança de Oxum” também transita por diferentes ritmos. Estou pensando agora: dançar é transitar. E essa cena, gravada na íntegra, tem em torno de 32 minutos. Da dança lenta e do tempo dilatado do início, ao chacoalhar mais rápido do corpo, até a queda final foram desenvolvidos muitos “assuntos”, ou seja, núcleos de dança que demandaram expressões diferentes, o tempo está a todo momento em modificação.

O que também posso relacionar a essa questão do tempo na dança é que as energias dos orixás Omolu (terra), Xangô (fogo), Oyá (ar), Oxum (água) e Oxalá (éter) foram estudadas nas aulas de preparação de elenco, e estiveram como conteúdos para serem explorados nas nossas performances. Então, elaborei um roteiro norteador como ponto de partida, para no caminho ir encontrando outras possibilidades que estariam dialogando com os princípios de movimento correspondente aos orixás e estudados anteriormente.  

Foto: Vanessa Mota

Uma coisa muito interessante e bonita que me chamou atenção sobre o movimento da vida na cultura africana dos Dogon, novamente, e que me permitiu fazer um elo com a movimentação do meu solo foi a vibração. A vibração aparece para mim no começo da cena como uma energia que anima o corpo e me põe em unidade. Já bem depois do filme, lendo Eduardo Oliveira (2009), encontrei o autor expondo que os povos Dogon conceituam a existência a partir de uma vibração, da energia e da emanação. 

Achei fantástico esse encontro de informações que só afirmaram para mim, através do tempo, da dança, do corpo e pelo corpo, uma ligação forte com uma energia ancestral.

É a partir da experiência com o longa que me impulsiono a saber mais sobre mim e sobre as outras mulheres negras alagoanas e filhas de Oxum. Me interessa saber como é a relação do cotidiano destas mulheres com o sagrado. Como o reflexo dos elementos culturais afro-brasileiros está presente nos corpos negros das filhas de Oxum. E como isso interfere no processo de empoderamento destas mulheres. Entre outras coisas. Respostas para serem tecidas na pesquisa de mestrado que está em andamento. A ideia da pesquisa é também de desenvolver um solo em dança contemporânea através do que essas mulheres me trouxeram como narrativa. É esse conteúdo que irá conduzir uma dramaturgia da criação artística prevista para fevereiro de 2022.

Referências

CAVALO. Direção: Rafhael Barbosa e Werner Salles. Maceió: La Ursa cinematográfica; Núcleo Zero, 2018. (84 min.) 

Orí. Direção: Raquel Gerber. Angra Filmes.1989. (91 min.)

BARBARA, Rosamaria Susanna. A dança das Aiabás. Tese de doutorado, Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2002.

OLIVEIRA, Eduardo. Epistemologia da Ancestralidade. Entrelugares: Revista de Sociopoética e Abordagens Afins. Fortaleza: UFC, v.1, n. 2, 2009, 10 p. Disponível em: http://www.entrelugares.ufc.br/phocadownload/eduardo-artigo.pdf. Acesso em: 24 out. 2016.

SODRÉ, Muniz. Pensar nagô. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. Bibliografia ISBN 978-85-326-5708-4 – Edição digital. Acesso ao Scribd em 11/11/2020.

Joelma Ferreira é artista independente, dançarina profissional desde 2009 na Companhia dos Pés, mestranda em Culturas Populares (PPGCULT/UFS), Especialista em Arte Educação e Sociedade (CESMAC), graduada em Licenciatura em Dança (UFAL) e Arte-educadora pela Secretaria Estadual de Educação de Alagoas.

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