As várias cabeças fora do tempo

Lucas Litrento

Lucas Litrento

A plaquete Diquixi: estudo para cabeças de Artur Timóteo da Costa é uma abertura de caminhos para a obra poética de Edimilson de Almeida Pereira

As semelhanças entre diquixi e exu não são apenas de origem, ambos os seres míticos vêm da África Ocidental. O diquixi (também di-kishi) é um monstro de duas cabeças capaz de olhar para todas as direções, “contendo em si os princípios da vida e da morte”[1]. O orixá exu, por sua vez, além de mensageiro também pode ser entendido como “um mediador entre distintos universos míticos e sociais, um ‘ser duplo’ que traz em si as partes mediadas”[2].Também são metáforas para a multiplicidade, representantes da complexa relação ontológica das cosmovisões de origem africana, ponto de origem de uma face considerável das filosofias populares espalhadas Brasil afora. Podemos usar essas figuras mitológicas como chaves de leitura para a obra literária de um dos principais autores da poesia brasileira, Edimilson de Almeida Pereira. O escritor e professor mineiro lança esse mês, pelo Círculo de Poemas, a plaquete Diquixi: Estudos para cabeças de Artur Timóteo da Costa, que acompanha o livro A água é uma máquina do tempo, de Aline Motta, compondo a caixa do mês do clube de assinatura da editora. A plaquete é um poema fragmentado em 10 partes, baseado na figura que dá título ao volume e na obra Estudos para cabeças, do pintor carioca Artur Timóteo da Costa.

Parte considerável da obra de Edimilson se debruça sobre a investigação do lugar e das vozes do artista afro-diaspórico. Pelo caminho do drible, o poeta transforma sua voz nessa imagem de cabeça múltipla por meio da relação glissantiana. O que vemos nos textos do escritor é um palco aberto onde referências de várias origens se encontram, assim como a ideia de caos-mundo pensada pelo martiniquense Édouard Glissant, uma dessas principais referências para o poeta. O que percebemos nas vozes duplicadas do eu lírico que dá voz ao texto não é apenas o eco de conterrâneos consagrados como Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa, mas também a síncope dos tambores dos barracões e terreiros, o ritmo dos folguedos e congados, o cantopoema. No entanto, é interessante notar que na plaquete não são apenas essas falas de partida que se relacionam, mas a própria noção de tempo.

A plaquete na livraria Novo Jardim, em Maceió.

“Não há razão quando o desespero / é o rito / diário / o pão / e a cepa de um desastre. // Quantos são párias no PAÍS-TEMPESTADE? / Todos / e nenhum de nós.” Ao longo do poema, esse país em caixa alta é nomeado de diversas formas (PAÍS-INAPTO, TÚMULO-PAÍS, PAÍS-COLAPSO, etc.). Durante a leitura, não vemos, embora combine muito bem com o momento atual, uma marcação temporal estanque que localize esse país. É possível associar essa atemporalidade com uma ideia da professora Denise Ferreira da Silva. Ela elabora que o evento racial acontece fora do tempo, já que os séculos passam, mas o capital global continua utilizando nossos corpos como moeda de troca de forma similar. Afinal, segundo ela, “esses episódios espaço-temporalmente isolados estão interligados. Eles se tornam reiterações do evento racial, cada um deles exemplificando como a violência racial protege a propriedade, a relação jurídico-econômica que une (pelo quadril compartilhado) Estado e Capital”[3]. “Diminua-se o lucro e se aposte / nos cabeças.”  É desse modo que o país que aparece em Diquixi pode ser de qualquer período, onde o poeta aponta, sem precisar nomear, o Brasil dos últimos quatro anos, que também se confunde, de certa forma, com o Brasil dos últimos quatro séculos.

Live de lançamento da plaquete

É assim que vemos o duplo movimento de matar o pássaro ontem com a pedra que é jogada hoje. As cabeças dizem que “Nascemos para a morte, não / para sermos mortos”, como num chamamento ao povo, para que todos também multipliquem suas próprias. Notamos em Diquixi uma voz mais urgente, mais rapper, mas ao mesmo tempo outros ecos reconhecidos da poética do autor também estão presentes: um eu lírico que parece com um professor (o próprio Edimilson?) paciente e ciente de tudo e outro que se aproxima da figura de um malandro, de um exu, quem domina os ditos populares e as metáforas das ruas.

O convite à coletividade vai além do movimento de enxergar a multiplicidade em cada um de nós. “É preciso dizer-lhes que não / não somos deles, / não assumimos sua ruína.” E esse chamamento vem como o toque de um tambor, sincopado.  Esse ritmo nos leva a sentir o que é visível no próprio corpo do texto: a fratura, o estado fragmentário, a imagem de uma fresta. Essas imagens são sínteses de certo movimento malandro do drible, presente nas canetas e nas vozes de autores afro-brasileiros como Ricardo Aleixo (“boca também toca tambor”) e Mano Brown (“me degradar pra agradar vocês? Nunca”). 

Diquixi nos impressiona por vários prismas. Assim como as cabeças múltiplas do ser mitológico, nos deparamos com uma poética que cresce por meio da relação que põe em sobreposição diferentes rizomas culturais, postos lado a lado num palco errante, é daí que salta a singularidade na voz do poeta. Escrevendo como quem dança ritualisticamente, Edimilson de Almeida Pereira coloca o leitor como mais uma das cabeças que endossam suas odes: ao mistério, à força, à solidariedade radical em um mundo que precisa ser mais como as rimas dos mestres de folguedos.          

Para a poesia brasileira, é como se Edimilson convocasse os demais poetas a também caminharem à beira do abismo, a também escreverem no meio da escuridão. Pois, se nos seus poemas também ouvimos ecos de uma voz professoral (que em momento algum se aproxima de certa tendência contemporânea que mistura literatura e sociologia de maneira simplória e moralista), o que se sobressai (entre as brechas dessas vozes) é o canto de um poeta fora do tempo, ou presente em todos eles. É possível também considerar a plaquete como um mergulho inicial na obra do artista, que já trabalhou a imagem do diquixi em outros trabalhos, como no poema Instrução do homem pela poesia em seu rigoroso trabalho, do livro O homem da orelha furada (Edições d’lira, 1995), onde ele escreve “Escrevo diquixi e não vinga: outra coisa é/ diquixi escrito”, multiplicando ainda mais a quantidade de duplos nesse intricado jogo de espelhos. Por fim, o poema nos instiga a esperar pelo próximo volume de poesia do autor, que sempre busca se deslocar e se desafiar dentro da sua própria constelação (vem construindo desde os anos 80 uma obra extensa). Diquixi é um poema curto, onde há muito a ser dito, pelas várias cabeças do eu lírico e pelas outras tantas do lado de cá, que também participam dessa dança no escuro.


[1] Contos populares de Angola: folclore quimbundu (Nova Crítica: 1978).

[2]  Vagner Gonçalves da Silva. Exu do Brasil: tropos de uma identidade afro-brasileira nos trópicos. Revista de Antropologia, v.2, n.55, 2012.

[3] Denise Ferreira da Silva. O evento racial ou aquilo que acontece sem o tempo, traduzido por Alexandre Barbosa de Souza, em Histórias Afro-Atlânticas: Antologia, São Paulo: MASP, 2022.

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