Um natal encantado

Em crônica inédita para a Loitxa, o jornalista e podcaster alagoano Homero Baco narra episódios que marcaram a última festa de Natal no povoado de Olho d’Água da Cerca, no município de Traipu, em Alagoas

Texto: Homero Baco
Revisão: Loitxa Lab

ENCANTAMENTO E FRESTAS

Eu não tenho tanta leitura dos escritos do professor Luiz Antônio Simas. Li o Arruaças que ele escreveu juntamente com Rafael Haddock-Lobo, Luiz Rufino. Neste livro a maneira como os autores, cada um à sua maneira já que é uma coletânea de artigos, reinterpretam termos como bagunça, arruaça, vagabundagem, trazendo-os pro centro da questão da brasilidade construídas nas frestas. 

Por óbvio que é uma brasilidade meio carioca, meio baiana, posto que os ritmos, as danças, as experiências corpóreas expostas pra formação dessa brasilidade são retiradas desses ambientes que estão observáveis aos olhos dos autores. Meu ponto aqui é que corpo encantado e a construção de uma brasilidade a partir das frestas meu pegou de jeito. 

Veja. Dizer que sou um morador do agreste alagoano ou de Traipu ainda me parece muito distante e abstrato em relação à territorialidade realmente existente. Eu me identifico como um filho do povoado Olho d’Água da Cerca. Digo isso não como alguém que quer defender alguma territorialização do homem moderno sem lugar. Se você tá bem como ser do mundo que não pertence a nada e a todo lugar, parabéns. 

Em outro momento o professor Simas dirá que a modernidade se define pelo colonialismo e que a colonização é um projeto de ataque sistemático aos corpos. Seja pela via da aniquilação (com o genocídio indígena e dos corpos pretos, com o encarceramento em massa); seja pela via da normatização ou domesticação (aqui muito em função de dualidades postas tanto pela modernidade quanto por certo cristianismo como corpo/mente; pecado/virtude;). 

Ainda nesse ponto da normatização Simas vai nos mostrar quatro aspectos dela: o corpo domesticado dentro da lógica do trabalho, um corpo enquanto ferramenta para uma sociedade mercantil; o corpo da mulher normatizado dentro da lógica reprodutiva; a virilidade masculina; a lógica da salvação da alma e da contenção do pecado.

Meu ponto aqui é que me parece que para pensar, discutir, escrever e refazer algo que possamos chamar de brasilidades, vamos precisar destruir essa porra. Todo o sentimento nacional precisa ser implodido e refeito a partir da territorialização palpável, dos pés no chão. Eu vou parar por aqui essa lombra, não é sobre isso que pretendo escrever.

UMA CHUVA INESPERADA

Voltando ao tema do corpo encantado a partir desse território que chamo povoado Olho d´Água da Cerca. No dia 25 de dezembro tinha uma festa programada para o povoado vizinho chamado Quixaba. Seria no bar quixabense. O dono, Jakson, já tinha comprado 50 caixas de cerveja e contratado um cantor popular por fazer cover na região. A expectativa era de bar cheio.

Pantica Lima seria a atração. O cantor é bem conhecido na região. Canta em festas dos povoados vizinhos. Com seu tecladinho e seu paredão faz cover dos grandes sucessos do piseiro do momento. O ‘Lima’ do nome é usado em homenagem a seu grande ídolo, o cantor Batista Lima, por muito tempo principal vocalista da banda Limão com Mel.

Mas a festa não saiu como planejado. No início da tarde, quando Pantica foi levar seu paredão e testar o equipamento, o tempo fechou. O céu que estava azul rapidamente ficou cinza. Uma chuva forte começou a cair. Nesse momento no bar só estavam os bêbados de sempre, parecia que a festa seria um fracasso. Não bastasse a chuva, todas as vias que dão acesso ao bar são estradas de barro e com o temporal a dificuldade para chegar ficava ainda maior.

Essas notícias, o acompanhamento em tempo real atualizando as condições da festa, me chegavam via grupo de Whatsapp. E foi no grupo “vamos ou bora” (de uso exclusivo para decidir onde será a próxima cachaça) que decidimos, eu e mais dois amigos, dar uma passada pra saber como estava a festa. 

Foto: Homero Baco

DAS GAMBIARRAS MUSICAIS 

Em setembro, o jornalista GG Albuquerque escreveu para a revista Gama o artigo ‘Como gambiarras eletrônicas criam novos gêneros’. Lá ele explica em detalhes como o desenvolvimento de um software possibilitou a criação de uma série de movimentos musicais os mais diversos e o mais importante: como são as cenas musicais negras e periféricas que se apropriam com maior riqueza desses elementos:  

“Acredito que as apropriações tecnológicas mais radicais estão nas cenas musicais negras das periferias. São contextos de precariedade material onde esses dispositivos e softwares são criativamente transformados e ressignificados, com suas possibilidades sendo expandidas e dando corpo a expressões musicais singulares e contra-hegemônicas”.

Se antes o professor Simas fala que o corpo que dança é parte do encantado (e por isso resiste a lógica que tenta nos domesticar) agora GG nos coloca que aquele que produz a música que faz esses corpos dançarem também opera nesse sentido (e aqui não importa de consciente desse movimento ou não). Uma música feita para elevar um corpo já em êxtase, numa mistura de som e substância. GG explica:

No atual funk mandelão de São Paulo, predomina um som agressivo, distorcido e ruidoso que contraria as expectativas de uma ‘música dançante’ e, sobretudo, as normas técnicas de uma boa produção, abraçando o “erro” em recurso expressivo. Em faixas como ‘Tuin Destrói Noia’, do DJ K, uma frequência aguda contínua perfura nossos ouvidos. O que para muitos é visto como incômodo, nos bailes de rua esse som complementa a alucinação auditiva provocada pelo uso do lança-perfume ou loló. Assim, os DJs constróem um vocabulário musical singular, que se nutre da ritualidade do baile para dar vazão a um som específico, não encontrado em nenhum outro lugar do mundo. 

CORPOS QUE RESISTEM 

Fomos de moto por um caminho que normalmente demoraria dez minutos para chegar. Com a condição das estradas levamos meia hora. Um dos amigos já tinha bebido a tarde toda e conversamos para tentar ir devagar já que por aqui ninguém usa capacete. Chegamos bem. E qual foi minha surpresa ao me deparar com mais de cem pessoas resistindo àquela chuva. 

O teclado de Pantica ficou protegido na parte coberta do local. Duas mesas grandes, cada qual com umas dez pessoas, também estavam na área coberta. Os demais se revezavam entre duas lonas improvisadas no meio do quintal. Alguns já sem camisa com uma mistura de suor e água da chuva, outros completamente bêbados andando como se estivessem pisando na lua.

Mas o mais interessante, ao menos pra mim, era a resistência a seguir dançando na chuva. Eram crianças correndo e pulando nas poças, casais que não se largavam no dois pra lá dois pra cá e o piseiro versão aquática. Agora ao invés de fazer subir a poeira o que se via era barro e água subindo por todos os cantos toda vez que se juntavam um grupo pra fazer o passo da pisadinha.

Não deve ser coincidência que esses corpos sejam majoritariamente pretos. Também não deve ser uma bobagem que esses embriagados sejam os trabalhadores das diárias a 50 reais na roça ou as mães e filhas cuidadoras de casas por aqui que recebem 200 reais por mês para ficar o dia inteiro na casa da patroa, normalmente uma mulher de vereador ou uma professora. 

Essa realidade não será romantizada aqui. Existe muita contradição, muita dificuldade. Mas é fato que esses corpos dançam, é evidente que naquele momento eles estavam felizes. Na conversa fica evidente que o que se quer é mais festa e menos trabalho, é mais chuva e menos seca. Aqui é uma junção que só entendi na hora. A chuva que faz a alegria do agricultor faz todo o sentido não ser temida, ao contrário, ela ser celebrada com pinga e piseiro é como fazemos por aqui.  

Homero Baco é jornalista e podcaster (flaucast). Tem Textos publicados em jornais como Tribuna Independente, Mídia Caeté e Brasil de Fato.

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